Rádio Prazer na leitura

domingo, 29 de junho de 2014

Antiquada - Capítulo 2


As duas se entreolharam e ficaram em silêncio por alguns segundos; logo após sua mãe lhe disse:
– Mariana, minha filha, o psicólogo me disse que você tem uma síndrome e se chama síndrome de Diógenes.
Mariana sentiu-se abismada:
– Síndrome do que?!
– Síndrome de Diógenes, nunca ouviu falar sobre isso?
– Não!
Mariana estava surpresa, seus olhos ficaram arregalados e sua respiração ofegante. Sua mãe prosseguiu lhe explicando:
– Segundo o psicólogo, essa é uma síndrome que ataca principalmente idosos. Mas também pode atacar jovens como você.
Ela continuava a fitá-la sem entender ao certo do que ela estava falando; sua mãe prosseguiu:
– Essa síndrome faz com que a pessoa junte, junte e junte muitos objetos ao longo da vida. Especialmente objetos antigos. O psicólogo me falou que a sua síndrome não é aguda, existem casos em que as pessoas sentem vontade de catar objetos que veem até mesmo no lixo; e graças a Deus, esse não é o seu caso.
Mariana ainda estava abismada com a declaração de sua mãe; ela nunca se consideraria dona de uma síndrome como essas, isso seria uma ideia totalmente descartável e sem sentido, mas infelizmente, era o diagnóstico que o psicólogo havia lhe dado e que tristemente sua mãe estava repassando a ela. Ainda sem concordar com a ideia, Mariana rebateu:
– Mãe, esse cara não sabe o que diz! Isso é coisa da cabeça dele. Esses caras estudam tanto que...
Mariana ficou em silêncio e por um instante perdeu as palavras.
Sua mãe meneou a cabeça e respondeu:
– Minha filha, isso tem tratamento e você irá se tratar. Infelizmente isso não tem cura. Só agora entendo por que você guarda tantas coisas velhas, não é sua culpa, minha filha. É culpa dessa síndrome.
Mariana não gostou do que havia escutado, apesar de entender que era completamente compulsiva. Sentia que todos estavam chamando-a de louca ou coisa assim.
– Mãe, eu não sou louca, tá?! – Rebateu ela em sua linha de pensamento.
Calmamente, sua mãe respondeu:
– Ninguém está falando que você é louca! Você apenas tem uma síndrome; isso não é loucura. Leia mais sobre isso! Apesar de gostar de coisas antigas, eu sei que você vive mexendo em seu computador. Pesquise mais sobre esse tema, eu só posso lhe dizer o que o psicólogo me passou.
Mariana aquietou-se e segundos depois, respondeu:
– Está bem, mãe! Irei ler sobre isso, quero saber do que se trata. – Mariana pegou na mão de sua mãe com força – Mas, em se tratando dessa casa; você me ajuda a comprá-la?
Sua mãe meditou nas palavras de sua filha por alguns instantes, e logo após respondeu:
– Espere um pouco minha filha; irei falar com seu pai, vamos ver o que ele acha. Lembre-se que quem trabalha em nossa casa é seu pai. – As duas se entreolharam e sua mãe completou com um sorriso constrangido. – E agora, você.
Mariana abaixou a cabeça e decidiu não rebater; olhou para sua mãe novamente e falou com firmeza:
– Vamos embora?
Sua mãe olhou-lhe concordando com a ideia. Logo após, arrancaram o carro e saíram.
Mariana desceu do carro e seguiu até o portão de sua casa com a cabeça baixa e sem nem sequer conversar com sua mãe. Bateu a porta do veículo e parou ao lado do grande portão de ferro que ergueu-se com um clique do controle e com a força do robusto motor que ficava ao lado das plantações de margaridas de sua mãe, encostada no muro alto da casa. Mariana observou o carro entrando e dirigiu-se a passos lentos para dentro da residência enquanto o grande portão de metal se fechava lentamente sobre ela, como um monstro lento e preguiçoso. Seus olhos vagavam pelo carreiro feito de pedras de rio que sua mãe havia mandado fazer a alguns anos. Ela havia contratado uma boa decoradora para ver qual seria a melhor curvatura que as pedras fariam e por onde elas poderiam seguir sem perder a sua verdadeira elegância. Na verdade, não importava onde o caminho iria dar; o que importava para a mãe de Mariana era o quão elegante o caminho iria ficar.
– Ela não é tão diferente de mim. – Murmurou Mariana enquanto caminhava por cima do carreiro de pedras arredondadas que ia dar no local onde, agora, suas antiquarias estavam amontoadas.
Mariana lembrava-se que um arquiteto havia participado da construção daquele caminho. Ele fez todo o desenho do carreiro que começava no portão de ferro onde ela havia entrado, passava ao lado da entrada de veículos e cortava caminho por dentro do bem cuidado jardim de sua mãe. Depois foi a vez dos construtores. Mariana lembrava-se que sua mãe estava sempre observando a construção do caminho e chateando os pobres homens se algo não ficasse como estava na planta que o arquiteto havia feito, ou então se o caminho não tivesse ficando como a decoradora planejava. Os pobres homens tiveram que refazer o caminho umas quatro ou cinco vezes devido as muitas exigências de sua mãe.
Mariana seguia pelo caminho olhando as pedras cuidadosamente postas uma ao lado da outra, assim como sua mãe havia ordenado aos homens. Os construtores tiveram que ser muito bem remunerados para aguentar todos aqueles meses de serviço duro sobre as ordens de uma senhora chata e exigente.
Quando o caminho terminou, Mariana entrou na peça onde suas quinquilharias estavam guardadas e as encarou com atenção. Seus olhos eram tristes e ela se sentia sem rumo. A visita ao psicólogo e o que sua mãe havia lhe dito dentro do carro, haviam mexido muito com seus sentimentos. Era estranho sentir aquilo; sua cabeça rodava e por um instante ela pensou não sentir os pés no chão.
– Eu não sou doente! – Gritou parada na porta da peça e acocorou-se enfiando sua cabeça entre os joelhos. Não chorou, pois não quis chorar. Não precisava daquilo naquele momento. Logo depois levantou a cabeça novamente e olhou em direção a todos os objetos empilhados dentro da peça e disse com os olhos rasos d'água:
– Vocês não tem culpa disso. Irei cuidar de vocês. Eu prometo que irei comprar aquela casa e irei colocá-los em um bom lugar. Eu juro!
Os objetos a encaravam como se tivessem vida, olhos e sentimentos. Era isso que Mariana sentia. Para ela, cada um daqueles objetos tinha um coração e dentro deles, sentimentos. Ela não entendia como as pessoas conseguiam descartá-los depois de eles terem fielmente lhes servido durante, muitas vezes, muito tempo.
– Isso é injusto com vocês. – Disse ela, levantando-se de onde estava e entrando dentro da peça. Passou a mão sobre uma cômoda muito antiga e lascada em um dos lados, e com um dos pés quebrado. Lembrou-se do dia em que comprou aquela cômoda. Estava indo para o seu trabalho no consultório em sua cidade e o móvel estava do lado de fora de um dos Bricks que vendem coisas antigas em sua cidade. Lá estava a cômoda, reluzindo ao sol quente de novembro quando ela parou e passou a mão sobre a superfície feita com madeira de canela.
– É linda. – Disse para si mesma.
Porém, naquele instante, um pensamento lhe abateu instantaneamente. Era uma de duende.
Você precisa disso?
– Não! – Respondeu ela para a voz de duende que saía de dentro dela mesma.
Então porquê pensa em comprá-la?
– Não sei. – Disse ela. – Eu quero tê-la.
E tens alguma explicação para isso?
– Acho que ela está se sentindo só.
Eu sei o que você está sentindo, mas isso é loucura. Objetos não tem vida.
– Eles tem sim. E tem sentimentos. Eles se sentem só e ficam magoados quando seus donos os abandonam.
Não acredite nisso. Você ficará louca se pensar assim e todos irão querer lhe internar.
Mariana sorriu com tristeza e deu de ombros ao duende em sua cabeça. Não quis mais debater com aquela voz idiota, e sem hesitar, dirigiu-se ao balcão de atendimento do brick e perguntou o valor daquele móvel.
– Ele custa 250 reais dona. – Respondeu o vendedor não acreditando que ela levaria aquela quinquilharia que já ocupava a horas a frente de sua loja.
– Irei levar! – Respondeu Mariana, convicta do que estava dizendo.
O vendedor arregalou os olhos e respondeu, tão surpreso quanto uma mulher casada que estava transando com o irmão de seu marido e foi pega por ele na própria cama dos dois.
– Você está falando sério. – Disse ele.
– Sim! Porém quero que vocês entreguem em minha casa.
Com os olhos ainda arregalados, o vendedor pediu o endereço onde ela morava e quando Mariana o entregou, ele quase não acreditou que aquela jovem tão bonita morava em um bairro de classe alta da cidade. Ele ficou olhando atentamente para o papel escrito com caneta esferográfica que Mariana havia tirado de sua bolsa se perguntando o que uma menina tão jovem, bonita e rica faria com aquele móvel tão velho, rústico e sem graça.
– Irão levar em minha casa? – Perguntou Mariana, um tanto impaciente com a demora do vendedor para respondê-la.
– Sim! Sim! Iremos! Agora mesmo! – Disse ele um tanto desajeitado.
Mariana tirou de dentro de sua bolsa um pequeno maço de notas de cinquenta reais e o vendedor arregalou os olhos como se fosse colocar fogo nas notas só de olhá-las.
– Quanto vai ser o frete? – Perguntou Mariana, firme.
Gaguejando, o vendedor respondeu:
– Va... va... vai ser... cin.. cin... cinquenta re.. reais.
Os olhos dele pareciam duas labaredas de fogo e uma pergunta insistia em sair de seus lábios. Ele não resistiu e logo após, perguntou:
– Por que a senhorita quer um móvel como esse, se podes ter os móveis que quiser, novos em folha?
Os olhos de Mariana o encararam com firmeza. Ela possuía um semblante irritado e sentiu-se invadida pelo vendedor. Sem hesitar, ela respondeu:
– Seu trabalho é vender ou perguntar o que seus clientes vão fazer com o que compram de você?
O vendedor engoliu em seco e não respondeu, somente concordou com a cabeça e disse que em menos de uma hora estariam chegando em sua casa para fazer a entrega do móvel a ela.
Mariana pagou e saiu; o vendedor acompanhou-a com os olhos até vê-la sumir de vista quando dobrou em uma esquina próxima a loja. Longe das vistas do vendedor, Mariana pegou seu celular de dentro da sua bolsa e discou o telefone de sua mãe. Colocou o telefone no ouvido e dois bips foram o suficiente para ela atender. Mariana disse a sua mãe:
– Fiz uma compra de um móvel em um Brick e daqui uma hora estarão ai para fazer a entrega. Peça para a Janice receber para mim. (Janice era a empregada da casa. Fazia praticamente tudo e era tida como uma governanta, pois morava com a família de Mariana desde de seu nascimento. Inclusive, a mãe de Mariana havia contratado a mulher para cuidar de Mariana quando ela havia nascido. Os anos passaram e a moça que havia sido contratada com seus 20 anos de idade, hoje estava com seus 47, e já enxergava sua aposentadoria chegando a passos lentos, como uma velha senhora, com reumatismo e dor nas costas andando com um incomodo andador de alumínio)
Mariana desligou. E novamente aquela voz de duende surgiu dentro dela.
Você sabia que eles tem sentimentos?
Mariana deu de ombros e continuou caminhando. A voz continuou:
Interessante. Você é do contra. Faz o inverso que deveria ser feito. Trata bem móveis velhos e acabados e jura que eles tem sentimentos e trata mal as pessoas ao seu redor; pessoas que realmente tem sentimentos e coração.
– Cale a boca! – Exclamou Mariana a voz de duende.
E a voz se calou quando Mariana colocou os pés no consultório onde estava trabalhando.
– Não vou abandoná-los, está bem? – Dizia Mariana enquanto passava as mãos pelo tampo de madeira da cômoda que agora jazia empoeirada dentro da pequena peça escondida atrás da casa de sua mãe. – Não irei fazer como fizeram com vocês antes. Vocês estão protegidos aqui comigo.
Mariana continuou andando e passou suas mãos sobre uma cadeira de barbeiro ao lado de uma geladeira velha e enferrujada que ela havia comprado na cidade em que morou quando havia saído de sua casa para tentar a vida sozinha. Ficou olhando para ela e reparando nas bolas de ferrugem que brotavam como cravos em sua superfície pintada de branco. Recordou que aquele havia sido um dos primeiros objetos que havia comprado.
– Você está linda. – Disse ela, olhando para a geladeira, passando a mão sobre suas explosões de ferrugem. – Podemos dar jeito nisso. Nada que uma boa reforma não resolva.
Ela olhava para a geladeira como se a mesma entendesse o que ela estava dizendo. Em sua imaginação, a geladeira ouvia tudo o que ela dizia e sentia o carinho de suas mãos sobre ela.
Todos os dias, Mariana ficava pelo menos duas horas conversando com seus móveis que já se amontoavam dentro da peça que a sua mãe havia feito para usar como um ateliê para suas decorações.
Dentro da peça havia duas camas, uma de casal e outra de solteiro; uma delas estava com o pé quebrado e a outra não possuía mais as grades. Haviam sido compradas de uma senhora pobre que ia jogá-las fora por ter ganhado duas camas novas da assistência social da cidade. Mariana as comprou, alegando para sua mãe que queria somente ajudar a pobre mulher que estava passando por necessidades. A mãe fingiu acreditar no que a filha havia dito e resolveu não se intrometer no assunto. No dia em que um homem estacionou uma camionete na frente da casa da mãe de Mariana e com a ajuda de um outro rapaz forte e tatuado descarregaram as duas camas velhas e sem utilidades para dentro da peça onde um dia seria seu ateliê, a senhora decoração resolveu sair para fazer compras mesmo que não precisasse de nada para comprar. Tudo o que ela não queria era enxergar mais um lixo de Mariana indo habitar a casa que, com a ajuda de diversas decoradoras, demorou a ficar como ela queria. Por isso havia cedido aquela peça a ela. Ficava no jardim da casa e longe dos olhares das pessoas que vinham visitá-la; apesar de todas as amigas dela saberem que sua filha tinha problemas com objetos antigos. As vezes, nos chás que tomavam juntas, suas amigas perguntavam:
– Onde sua filha guarda todas essas coisas que compra?
Ela respondia:
– Aluguei uma casa para ela bem longe da minha, só para ela guardar todas essas tralhas.
Elas insistiam:
– Isso é um grande problema.
– Eu sei. – Respondia ela, desanimada.
– É uma doença. – Dizia uma outra amiga que também costumava ir até a casa dela tomar chá e falar sobre decorações e sobre a vida da socialite da cidade. Todas ela eram mulheres de empresários e advogados da cidade que confessavam trair seus maridos constantemente. Quando entravam nesse assunto, ela procurava desviar a conversa, pois era uma mulher muito discreta e achava que devia mais do que pensava dever, e ninguém, nem mesmo suas amigas, precisavam saber disso.
– Iniciarei um tratamento para minha filha. – Dizia ela, pensativa.
– Esperamos que dê certo. – Respondia uma das amigas.
E a conversa se estendia, por toda a tarde, enquanto Mariana trabalhava no consultório, e enquanto suas quinquilharias descansavam na peça atrás da casa onde a senhora decoração e suas amigas tomavam seus chás tranquilamente.
– Minha filha.
Aquela voz a surpreendeu. Era a voz de sua mãe. Mariana olhou rápido para o lugar de onde vinha a voz e viu a sua mãe parada na porta da peça, olhando-a com um olhar triste e melancólico.
– Você está bem? – Perguntou sua mãe a ela.
Mariana não respondeu, ainda estava assustada. A quanto tempo sua mãe estava ali? Não sabia responder. Estava tão entretida conversando com suas antiguidades que havia esquecido até de si mesma.
Os olhos dela encararam sua mãe que entrou dentro da peça obscura e pôs as mãos nos ombros de sua filha mostrando-se muito preocupada.

Deem uma conferida nessa mesma história em minha página no Wattpad. Siga o link abaixo:
http://www.wattpad.com/57112273-antiquada-capitulo-2

Um comentário: