Rádio Prazer na leitura

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Antiquada

Todas as noites ao deitar-se em sua cama, Mariana postava-se a olhar para o teto de forro amadeirado de seu quarto, conseguia analisar cada fissura, cada fiapo de madeira solta e cada pedacinho de tinta desbotada que o tempo havia corroído em seus longos anos de existência, parecia que enxergava cada acontecimento que, aquele teto antigo feito em madeira, poderia ter acompanhado, durante longos anos, no vazio aparente daquele recinto onde ela se encontrava.
Sua casa era antiga, seu último dono, um senhor simpático de sobrancelhas grossas, disse-lhe que o casarão passou de geração para geração em sua família, portanto, seria uma pena ele tê-la que vender para alguém que ele não conhecia e nem nunca ouvira falar o nome, mas felizmente, disse-lhe ainda, que apesar de não conhecê-la, ele sentia que ela poderia cuidar muito bem do presente que havia sido deixado por seu pai, e em uma geração antes por seu avô ao seu pai, e por seu bisavô para seu avô e de geração em geração em seus quase cento e cinquenta anos de existência.
Mariana sempre teve paixão por objetos antiquados, sempre foi frequentadora assídua de museus, sebos e briques de móveis antigos, desde quando morava com seus pais, pouco antes de concluir sua faculdade. Sua maior vontade era trazer todas as quinquilharias que pudesse comprar para sua casa, sua mãe sempre a advertia que não queria que ela ficasse trazendo objetos sem utilidade e que só ocupariam espaço dentro de seu quarto. Mariana via-se podada desde muito jovem, a construir seu pequeno lar antiquado dentro da casa de sua mãe, que sempre viveu cheia de ideias modernas e inovadoras e fazia questão de estampar isso em todos os cantos, principalmente na decoração interna da casa. Dois mundos bem diferentes no que poderíamos pensar ser uma relação no quesito mãe e filha.
Seu pai nunca dera muito palpite sobre as ideias de sua esposa e muito menos de sua filha, simplesmente, cumpria as ideias de sua esposa, por quê as ideias de sua filha, assim como sua esposa, ele achava um completo absurdo e perda de tempo, mas, simplesmente, não dava muita atenção, deixava para sua mulher o fazer por ele, justamente para não se passar por um pai chato e incompreensivo. Sua mãe exercia o papel de carrasca perante sua filha em função dos dois, ele trabalhava em um bom emprego, a única coisa que fazia questão era concordar com tudo que sua esposa ditava dentro e fora de casa, afinal, ela era rainha daquele lar.
Farta com todas essas amarras pessoais, Mariana decidiu que moraria com seus pais até terminar sua faculdade de odontologia, paga logicamente por eles, e depois tentaria abrir um consultório por conta própria, ao custo do suor de algum trabalho que lhe aparecesse.
Logo após ao término de seu curso acadêmico, contra a vontade de seus pais, Mariana saiu de casa para realizar logo todos os sonhos que vinha planejando, longe dos questionamentos dos seus pais. Ao sair de casa, Mariana gerou uma frustração e um arrependimento muito grande em seus pais, que se convenceram logo após o ocorrido, que não estavam sendo tão generosos com sua única filha. Prometeram-lhe tudo o que ela queria ter e nunca teve, mas ela os questionava incessantemente, dizia-lhes a todo o momento que isso teria que ser dado de coração, e não simplesmente para que pudessem amarrá-la ao lado deles, se nunca haviam deixado que tivesse o que queria, por quê deixariam agora?
Seus pais já imaginavam a algum tempo que poderiam estar sujeitos a fuga de sua menina, mediante a vários avisos antecipados por parte dela, e é claro que eles não poderiam manter seu pequeno pássaro cativo dentro de sua gaiola residencial por muito tempo, e principalmente após eles terem a ensinado a voar, mesmo podando suas pequenas asas a todo o momento. Mariana achou que a sua faculdade concluída lhe traria total liberdade profissional para poder ganhar todo o dinheiro que queria e realizar seu sonho de ter sua casa própria, do jeito como sempre a imaginou, longe de seus pais autoritários e exigentes. Infelizmente foi um tiro que saiu pela culatra.
Primeiro mudou de cidade, depois foi morar de aluguel, inicialmente com algumas amigas que conheceu na faculdade, mais devido a diferença de ideias entre elas, decidiu ir morar sozinha, o que fez com que a situação apertasse ainda mais. Conseguiu um emprego de atendente em um consultório odontológico, aceitou na esperança de ver seu curso reconhecido e que logo poderiam colocá-la para atuar juntamente com o dentista responsável, podendo exercer todas as habilidades que aprendeu em seu curso e estágios práticos na faculdade.
Na verdade a situação não era bem como imaginava, tudo o que conseguiu foi ser abusada por um brutamontes que dizia ser um exímio dentista. Dentro do consultório do próprio, constatou que o que realmente vira era muito diferente do que aprendera em sala de aula.
“Aonde está o respeito e o bom senso, ética então, não existe”. Era isso que pensava a todo momento logo após o ocorrido.
Mas isso podia ter acontecido devido a ter escolhido estar ao lado de um açougueiro mau-caráter e tarado. Resolveu ir embora novamente, voltou para a casa de seus pais, como dizem “com o rabo entre as pernas”, escondendo, lógico, tudo o que sofrera em sua estada longe de casa. Contou a seus pais todas as partes boas que viveu, preferindo levar as ruins, um dia, para o túmulo.
Os anos se passaram e o sonho de ainda ter a sua casa cheia de antiquarias e coisas antigas martelava em sua cabeça. Logo começou a trabalhar em um consultório odontológico em sua cidade, de onde começou a pensar que nunca deveria ter saído. Morava com os pais, hoje com uma certa liberdade dada por sua mãe, que até havia feito questão de arrumar um lugar em sua casa para sua filha poder expressar toda a sua paixão por objetos antigos. Mariana visitava briques, comprava um móvel e outro, frequentava sebos e museus onde vendiam peças centenárias, livros e vinis em boa qualidade e ela os comprava por preços notavelmente baratos. Em pouco tempo, Mariana estava com um acervo gigantesco em sua casa e sua mãe já começara a reclamar de tanta bagunça. Os problemas novamente começaram.
Ela se viu, novamente, aos trancos e barrancos com a mãe que até aquele ponto, não aguentava mais dividir sua casa com os cacarecos da filha, que já tinham tomado conta do pseudo quarto dado a ela, exclusivamente para colocar suas “tralhas”. Como previam, já havia lotado o quarto da filha, e já estavam dividindo a casa ao meio, formando uma notável parede de moveis antigos com caixas e mais caixas de livros e discos de vinis empilhados, todos comprados em sebos na cidade e em cidades próximas. O acervo estava começando a ficar imensuravelmente grande e sua mãe estava começando a se arrepender de ter trazido sua filha de volta para casa.
- Se em menos de um ano já juntou isso tudo, imagina se ela morar conosco o resto da vida? - Dizia a mãe de Mariana a seu marido que fazia um gesto com as costas como se dissesse: “Fazer o quê?”
Ao notar os esbravejamentos da mãe, Mariana se deu conta que o seu tempo naquela casa estava próximo de acabar e que a convivência com seus pais estava começando a ficar insuportável, principalmente com sua mãe, com quem dividia maior parte de seu tempo. Perdida em meio a seus objetos pensava: “Tenho que comprar uma casa para mim, uma casa onde eu possa conviver em paz e que seja totalmente a minha cara, onde a minha mãe não esteja torrando a minha paciência e nem eu possa ver a cara de pastel de meu pai ao vê-la reclamar toda a sua impaciência. Ela sabe que sempre fui assim, até já tentei me controlar, mas não consigo, parece compulsão, mas ainda quero adquirir um número significativo de objetos, já os vi em um catálogo que achei no para-brisa de um carro.”
Alguns meses se passaram e Mariana havia começado a guardar o seu dinheiro, que ganhava mensalmente, ao custo de seu trabalho no consultório, como atendente. Em menos de um ano, ela conseguiu guardar uma quantidade significativa, devido a sua mudança de cargo. De atendente ela havia passado para uma verdadeira profissional da área odontológica, onde conseguiu finalmente, depois de todo esse tempo, exercer a função na qual se formara.
No entanto, continuava mantendo certos desentendimentos com sua mãe, devido ao excesso de objetos que haviam tido um aumento demasiadamente grande. Devido a isso, resolveu construir um galpão de madeira no pátio de sua casa, para alojar todas as suas quinquilharias. Sua mãe, vendo-se sem mais perspectivas para convencer a filha quanto a seus exageros, resolveu marcar uma consulta, contra a vontade de sua filha, com um psicólogo para saber se a sua filha realmente tinha algum tipo de compulsão por este tipo de coisa.
Mariana relutou muito em consultar-se, dizia que sua mãe estava ficando louca de vez, mas suas tentativas foram em vão, sua mãe a venceu pelo cansaço e para fazer com que ela parasse com seus pedidos apelativos, decidiu ir até a consulta. Logo depois de terminada a conversa com o psicólogo, ele chamou a mãe de Mariana que havia acompanhado a filha até o consultório.
-Tenho uma notícia para você.
Ela arregalou os olhos e disse preocupada, enquanto sua filha esperava dentro do consultório:
-Algum problema doutor?
-Bem...- O psicólogo demonstrava calma.- Conversando com sua filha, aparentemente ela é uma menina normal, fez faculdade, é superinteligente, mas...
Fez-se um silêncio que perturbou a mãe de Mariana:
-Fale doutor!
Impulsionou ela.
-Sua filha possui uma síndrome chamada síndrome de Diógenes.
Sua reação foi de completo espanto, arregalou os olhos perguntando:
-O quê? O que é isso doutor?
-É uma síndrome que se caracteriza pelo acúmulo de objetos, geralmente antigos, que não possuem utilidade. Sua filha é muito nova para ter este tipo de distúrbio que, geralmente se dá entre idosos, mas tenha sorte que ela não anda catando lixos por ai. Você me disse que ela compra as coisas que possui em lojas especializadas, em alguns casos as pessoas juntam coisas velhas e que foram descartadas por outras pessoas para o seu uso ou simplesmente para tê-las alegando que isso é de grande utilidade.
-Mas é quase isso que acontece com minha filha, ela compra e compra esses objetos antigos, mas nenhum deles possui nenhuma utilidade.
O médico deu um leve sorriso e prosseguiu:
-Bem, sua filha é uma compulsiva de luxo, ela não gosta de juntar coisas, mas sim de comprá-las e me disse também que está juntando dinheiro para comprar uma casa, obviamente, antiga e um belo carro modelo anos 50, e disse que só assim poderá tirar todos os seus objetos de sua casa.
Ao ouvir as palavras do psicólogo a mãe de Mariana ficou pensativa e logo perguntou:
-Existe algum tratamento para essa síndrome doutor?
O médico abaixou a cabeça, pensou um pouco antes de falar, fazendo com que a mãe de Mariana pudesse compreender seu discernimento.
-Não. Isso é uma compulsão, não existe tratamento, só o amor, carinho e, principalmente, compreensão da família poderão ajudá-la.
O médico abaixou a cabeça novamente ao vê-la se fechar em pensamentos consequentes do que havia lhe dito, depois deu um sorriso discreto lhe sugerindo:
-Posso lhe dar uma dica?
A mãe de Mariana foi toda ouvidos:
-Sim, preciso de uma.
-Ajude-lhe a ter essa casa. Ela me disse que já possui um bom dinheiro guardado, quem sabe assim, ela sentirá que vocês realmente se importam com ela, pois pela conversa que tive com ela, ela está achando que vocês não dão a miníma para o que ela pensa ou sente.
A mãe de Mariana o olhou atravessado, o médico rebateu em palavras seu olhar:
-Isso foi só o que ela me disse, não me julgue por nada, só a escutei e lhe orientei, quero que ela venha toda a semana em meu consultório, esse é o único tratamento que poderemos oferecer a Mariana, além do amor e compreensão de vocês.
Ela ficou pensativa novamente, com um sorriso no rosto, apertou a mão do médico e agradeceu pelos serviços prestados. Mariana foi chamada para fora do consultório, logo entraram no carro e sua mãe debateu com sua filha o que o psicólogo havia lhe dito, mas sem contar a ela o verdadeiro diagnóstico que o médico lhe revelara. Mariana não concordou muito, embora em seu íntimo sentisse que era realmente compulsivo seu problema.
Seguiram por ruas e avenidas até Mariana pedir para sua mãe parar em frente a uma casarão visivelmente abandonado, que ficava em uma rua isolada numa área suburbana da cidade. Com o carro parado em frente a velha casa, Mariana apontou em direção da antiga construção e muito empolgada disse a sua mãe:
-Olha lá mãe, eu nunca lhe falei, mas essa é a casa de meus sonhos.
Sua mãe sentiu um nó apertar sua garganta, teve vontade de repreender sua filha, mais logo lembrou das palavras do psicólogo.
“Carinho e compreensão”
E logo se voltou a ela com um sorriso no canto de sua boca.
-Nossa filha, que casa grande, mas está completamente abandonada.
-Sim, andei me informando sobre ela. Tem mais de 150 anos e me parece que sempre pertenceu a mesma família e foi passada de geração em geração, o dono é um senhor de muita idade e não mora na casa, possui uma outra residência no centro da cidade.
Sua mãe abismou-se com as descobertas da filha e de onde ela havia conseguido tantas informações sobre aquela velha construção. Logo questionou:
-Mas filha, se essa casa já vem de longa data sendo da mesma família e passou de geração para geração, seria estranho esse senhor querer vendê-la. Não descobriu se nada aconteceu nessa casa?
Mariana olhou-a atentamente dizendo-lhe:
-Mãe, eu descobri que esse senhor nunca teve filhos, seus 4 irmãos já morreram e só restou ele, isso quer dizer que ele não tem para quem passar a casa. A única solução é vendê-la e eu já juntei um bom dinheiro, acho que posso dar uma entrada nela.
Sua mãe a olhou pensativa, esforçou-se para não dizer o que realmente achava, mas suas palavras foram inevitáveis.
-Filha, acho que será um desperdício de dinheiro comprá-la.
Mariana olhou seriamente para sua mãe, desaprovando seu argumento:
-Eu acho que devo comprá-la, ela é perfeita para mim. Além do mais, você vive reclamando de minha estada em sua casa. Já tenho o dinheiro de uma possível entrada e estou pensando em falar com o dono da casa. Como estou trabalhando, acho que não existe problema nenhum em financiá-la.
Sua mãe colocou as mãos sobre a cabeça, tentando se conformar com o raciocínio da filha, e mais uma vez lembrou-se do que o psicólogo lhe falou. Logo depois argumentou:
-Está bem filha, vamos ver o que podemos fazer, te ajudarei se for preciso, mas antes quero lhe falar o diagnóstico do médico quanto a você.
Por um momento Mariana encheu-se de alegria, aconchegou-se perto de sua mãe e deu-lhe um beijo no rosto, com um sorriso que ia de orelha a orelha. Pela primeira vez, sentiu sua mãe concordar realmente com algo que lhe propusera. Em sua euforia, quase esqueceu-se do que sua mãe tinha para lhe dizer, que, consequentemente, era de suma importância para ela.

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